Nos últimos anos, o Brasil avançou significativamente no acesso à Educação Infantil. Quase todas as crianças de 4 a 5 anos estão matriculadas, o que representa uma importante conquista. Mas é preciso ir além da presença na escola. Hoje, nosso maior desafio é garantir que essa presença se converta em aprendizagens significativas, especialmente no que diz respeito ao desenvolvimento das habilidades fundacionais da alfabetização.
Avaliar os precursores da alfabetização é uma das chaves para isso. Não se trata de antecipar conteúdos nem de transformar a Educação Infantil em uma “pré-escola formalizada”. Trata-se de olhar, com respeito e intencionalidade, para os aspectos do desenvolvimento que sustentam a futura aprendizagem da leitura e da escrita.
O que são precursores da alfabetização?
Os precursores da alfabetização são habilidades que se desenvolvem antes da leitura e escrita convencional, mas que são essenciais para que essas aprendizagens ocorram de forma sólida e fluente. Entre os principais, destacam-se:
Consciência fonológica: capacidade de perceber e manipular os sons da fala (como rimas, sílabas e fonemas);
Conhecimento do alfabeto: reconhecimento das letras e seus nomes;
Conhecimento dos sons das letras: saber que a letra “M” representa o som /m/, por exemplo — uma habilidade central para a decodificação futura;
Vocabulário oral: repertório de palavras que a criança compreende e utiliza em suas interações;
Memória de trabalho e atenção: habilidades cognitivas que sustentam o processamento de informações;
Conceitos sobre a escrita: compreender que a escrita representa a fala, que se escreve da esquerda para a direita, que há diferença entre letras e desenhos, entre outros.
Essas competências fazem parte do que chamamos de literacia emergente — um conjunto de conhecimentos e atitudes que se desenvolvem antes da alfabetização formal, por meio de interações cotidianas com a linguagem, os livros, a fala e a escuta atenta dos adultos.
Avaliar não é antecipar: é garantir equidade
Avaliar o desenvolvimento desses precursores não significa “ensinar a ler antes da hora”. Significa observar, registrar e interpretar, de maneira lúdica e respeitosa, como as crianças estão se desenvolvendo e o que ainda precisam para avançar.
É possível — e necessário — realizar essa avaliação com sensibilidade, por meio de atividades integradas ao brincar, como jogos sonoros, rodas de histórias, atividades com letras móveis e momentos de conversa mediada. Brincar e aprender não são opostos, mas aliados quando há intencionalidade pedagógica.
Rotinas estruturadas fazem diferença
Um ponto essencial para promover esse desenvolvimento é a presença de rotinas estruturadas e bem planejadas na Educação Infantil. Atividades como leitura diária de histórias, cantigas, jogos com sons e letras, conversas em pequenos grupos e exploração de materiais escritos ajudam as crianças a construir repertórios, perceber regularidades da língua e desenvolver atenção e memória — habilidades essenciais para a alfabetização futura.
Essas rotinas não “roubam” a infância. Pelo contrário, garantem que todas as crianças tenham acesso aos estímulos e experiências que favorecem o seu desenvolvimento integral, inclusive aquelas que vivem em contextos menos favorecidos.
O Efeito Mateus e a urgência da equidade
Há um fenômeno bem conhecido na psicologia educacional chamado Efeito Mateus, em referência a uma passagem bíblica: “a quem tem, mais será dado; mas a quem não tem, até o que tem lhe será tirado”. Na alfabetização, isso significa que crianças que chegam à escola com mais habilidades linguísticas e cognitivas tendem a aprender mais rápido e continuar avançando. Já aquelas que começam com desvantagens têm mais dificuldade, aprendem menos e, com o tempo, veem essa diferença se ampliar.
Esse efeito reforça a desigualdade, e é exatamente por isso que avaliar e intervir precocemente é uma questão de justiça social. Quando identificamos desde cedo quais crianças precisam de mais apoio, podemos agir a tempo de garantir que todas tenham oportunidades reais de aprender.
Superamos o acesso, mas não a qualidade
A verdade é que já superamos os desafios do acesso e, em grande parte, da permanência na escola. Mas a qualidade da aprendizagem ainda está longe do ideal. E os dados mostram isso: quando os alunos não atingem as expectativas de fluência leitora no 2º ano, a raiz do problema geralmente está na ausência de uma base sólida construída nos anos anteriores. Eles não “falham” no 2º ano — apenas não tiveram as condições necessárias desde o início.
Conclusão
Avaliar os precursores da alfabetização, de forma lúdica e respeitosa, é reconhecer que a alfabetização começa muito antes da decodificação formal. E que a Educação Infantil tem um papel fundamental — não como um “preparatório”, mas como um espaço legítimo de desenvolvimento de habilidades, de ampliação de repertórios e de construção de oportunidades.
Se quisermos garantir que todas as crianças aprendam a ler com fluência, compreensão e prazer, precisamos começar pelo começo — e fazer isso com ciência, com sensibilidade e com compromisso com a equidade.