O MEC recentemente anunciou os resultados de alfabetização das crianças em 2023, como se estivesse divulgando uma grande novidade: os resultados melhoraram depois do fundo do poço na pandemia, estamos melhores do que em 2019, voltamos aos índices de antes da pandemia. Segundo os dados do 1º Relatório do Indicador Criança Alfabetizada, 56% das crianças entre 6 e 7 anos da rede pública de ensino foram alfabetizadas em 2023, um aumento de 20 pontos percentuais em relação a 2021 e 1% acima do nível pré-pandemia de Covid-19 registrado em 2019.
Mas a verdade é que apenas despioramos. Estamos apenas voltando à nossa mediocridade. A palavra “medíocre” é forte e tem vários significados, mas vamos adotar aqui a ideia mais simples de que algo medíocre é algo comum, que está na média. É nesse sentido que quero dizer que voltamos a ser medíocres. Estamos falando aqui da clássica regressão à média. Quando fazemos uma avaliação de eventos extremos, em Estatística, é comum observarmos que na próxima medição esses números retornem a algo próximo da média.
Funciona assim: imagine que você tem uma tendência de peso, mas fica doente e sem se alimentar direito por dois dias. Seu peso cairá drasticamente, mas dois ou três dias depois ele tenderá a regressar à média. Foi isso que observamos recentemente. A alfabetização no Brasil é ineficaz há décadas, nossos resultados ficaram piores com a pandemia e, surpresa!, estamos apenas voltando a ser medíocres. As escolas continuam a ser ineficazes, as redes de ensino ineficientes estão alfabetizando, quando muito, metade dos alunos há décadas no país. Salvo, é claro, algumas exceções, como é o caso do Ceará, que já alfabetizava muito bem antes da pandemia e continuará assim.
Eu gostaria de fazer apenas uma breve digressão para explicar que, apesar da necessária generalização, existem, graças a Deus, muitas exceções e que não estou aqui culpabilizando as escolas e os professores por questões macroestruturais. Existem muitos professores pelo Brasil que fazem milagres todos os dias, alfabetizando com sucesso porque buscam soluções e fogem das orientações oficiais que estão em descompasso com o que dizem as evidências científicas sobre a alfabetização. Vemos pelo país heróis e heroínas solitários que, quando fecham as portas de suas salas, buscam todos os recursos possíveis para garantir o direito à alfabetização de seus alunos. Estes, infelizmente, são silenciados e diluídos nas estatísticas oficiais, mas, apesar de tudo, mesmo invisíveis, salvam meninos e meninas de um destino triste de analfabetismo escolarizado. Minha total gratidão a todos eles.
Retomando a discussão, a pandemia obviamente aumentou as desigualdades, desvelando o triste fato de que as maiores desigualdades no país não ocorrem apenas entre estados e municípios, mas dentro das escolas, e ainda pior, dentro das próprias turmas. Alguns aprendem, enquanto a maioria não tem chance. Aqueles que tinham pouco, durante a pandemia, ficaram com ainda menos. Os que tinham mais, tiveram alguma chance ou melhores condições para aprender. Essas pequenas diferenças vão se intensificando se não fizermos nada hoje. Chamamos isso de efeito Mateus: o que tem pouco fica com menos, e o que tem mais fica com mais. Aqueles que estão em vulnerabilidade serão sempre os mais prejudicados se não fizermos algo para mudar essa realidade – e não há tempo a perder.
Mais uma breve lição de Estatística: a média é uma medida de tendência central e pode ser muito influenciada pelos extremos. Em um exemplo hiperbólico, se eu tivesse 100 escolas e 50 delas alfabetizassem 100% dos alunos, enquanto as outras 50 não alfabetizassem ninguém, a média mostraria que minhas 100 escolas alfabetizam metade dos alunos. Parece bom, mas quantas pessoas ficariam sem aprender, não é mesmo? Satisfeitos com a metade, e mesmo almejando subir o índice na próxima vez, quem se lembraria de que não terá próxima vez para o Joãozinho, para a Mariazinha, para o Pedrinho? Quem se lembraria do José? E agora, José?
Durante a pandemia, tivemos mais de 5 milhões de estudantes sem qualquer tipo de acesso à educação e, para os demais que tiveram algum acesso, tudo foi muito fragmentado e questionável, para não dizer que apenas tampamos o sol com a peneira, como se diria em bom português. O fato é que não há nada a celebrar nos resultados de alfabetização divulgados. Regressar às médias de todo o país era o mínimo que se esperava dois anos depois do final da pandemia. Se a pandemia afetou tanto, e sabemos que sim, sem ela deveríamos ter aprendido algo e ido além, não apenas voltado a patamares anteriores.
Claro que Ceará e Sobral vão ter resultados surpreendentes. Quem sabe o que está fazendo, em boas condições de clima e normalidade, vai fazer bem a lição de casa. Mas ainda temos muita gente desassistida, muitas orientações equivocadas. Como comemorar que metade dos brasileiros aprende a ler, quando estamos nos esquecendo da outra metade que não está nada bem? Como nos esquecer daqueles 5%, 10%, 15% que nem ao menos conseguiram fazer as provas e estão fora dessas estatísticas, ocultados pela informação de que a “taxa de participação foi de 80 a 90%” nas avaliações? Como comemorar que essas crianças aprendam, e esquecer aquelas que estão hoje no 4º, 5º, 6º ano sem saber escrever o próprio nome? Ou aquelas que desistiram e talvez um dia voltem à Educação de Jovens e Adultos? Não quero nem lembrar que o que se considera “alfabetizado” para essa metade que chegou lá é ainda muito inferior ao que qualquer país minimamente desenvolvido consideraria. Baixamos a régua e comemoramos o mínimo.
Adicionalmente, cabe lembrar que o “milagre” atribuído aos “primeiros resultados” do Compromisso Nacional Criança Alfabetizada é realmente digno de canonização. Isso porque o programa foi lançado em junho de 2023 e não houve nenhum repasse de recursos para as redes até novembro de 2023. As crianças foram avaliadas entre outubro e novembro de 2023 e já estavam no segundo ano do ensino fundamental. Além disso, os critérios técnicos do INEP foram modificados, com base em uma “pesquisa” de opinião questionável, com 251 professores escolhidos a dedo, o que dificulta a comparação da série histórica de dados.
Parafraseando Renato Russo, chega de “celebrar a estupidez humana”. Não queremos mais a alfabetização de metade, comemorar o meio certo, o meio cheio, o medíocre. O tempo não para, as crianças precisam ser alfabetizadas hoje, precisam ser alfabetizadas agora. Não pense apenas nos números, lembre que esses números todos são apenas abstrações de milhões de crianças, de vidas, de pessoas, de cidadãos, de futuros profissionais e de chefes de família que têm suas próprias identidades, histórias, medos, sonhos, esperanças. Se um hospital salvasse apenas metade das vidas que lá chegam, ficaríamos satisfeitos? Que futuro estamos preparando para as crianças do Brasil? Que futuro preparamos esperando alfabetizar apenas os que chegarão em 2030?
Ainda parafraseando Renato Russo na música “Perfeição”: “Meu coração está com pressa”. Nossos corações estão com pressa! Nossas crianças estão com pressa! Devemos celebrar quando todos os brasileiros, independentemente de seu CEP, origens, crenças, etnias, ou qualquer outra variável, possam ler e escrever com sucesso e na idade esperada. Alfabetização é a base de todo o processo de escolarização e do sucesso na vida dentro e fora das escolas. Deve ser considerada um direito humano básico, essencial e prioritário. Somente com um bom começo podemos ter uma trajetória de dignidade e possibilidades neste país. Só assim nosso futuro recomeça!
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